terça-feira, 6 de julho de 2010

ser mulher nunca foi fácil.



Esse trecho (imenso) que transcreverei agora é de um livro chamado O Quarto Procedimento, da autoria de Stanley Pottinger. A sinopse gira em torno de corpos de homens que aparecem com canetas no estômago e a única coisa que eles tem em comum era que estavam presos/foram presos por explodirem clínicas de aborto nos EUA. Aliás, aborto é o tema-chefe do livro. Ele coordena absolutamente todos os passos: a advogada feminista militante, a médica que consegue realizar transplantes entre animais e humanos, o candidato a senador/deputador/algum cargo de governo que esqueci que é namorado da advogada e milita pela permanência da lei que permite o aborto, o juiz que vai contra isso, enfim, uma série de personagens com argumentos contra e a favor da liberação do aborto em Washigton, EUA.

Eu sempre quis passar essa parte pra você porque, de algum modo, eu me senti tocada. Me deu calafrios saber que boa parte das coisas citadas já aconteceu com alguém. E tem coisas que ainda acontecem e isso me faz me sentir mais mal ainda. Mas ao mesmo tempo são coisas como essas que me lembram e reforçam de que as coisas ainda não estão ok pra dizer 'beleza, 'bora descansar', que a igualdade ainda não está completa e que há muito trabalho pela frente.

Eu não vou dizer quem disse isso, nem transcreverei a última frase porque ela é spoiler. Quem lê o prólogo e lê a última frase entende a história toda e aí acaba o suspense.

Observação: tem coisas que não acontecem mais hoje em dia. Outras que tenho dúvidas se já aconteceram de verdade. De qualquer modo, mesmo que 90% nunca tenha acontecido, não aliviará a dor dos 10% que são reais.

"- Por que eu? - [...] - bem, cavalheiros. Deixe-me contar.

- Não fui estuprada por um louco. Não me cuspiram nem xingaram por entrar numa igreja estando menstruada. Não fui segurada enquanto velhas cortavam meu clitóris. Minha vagina jamais foi costurada ou rasgada. Não fui forçada a queimar até a morte na pira funerária do meu marido morto. Não fui afogada no rio Yang-Tsé por ter nascido sem pênis. Não fui vendida para um harém em Cartum. Não fui apedrejada por tocar o Torá. Minha garganta não foi cortada por ter dormido com um homem que não era meu marido. Nunca fui espancada por um cáften (N.L.: cáften é o mesmo que cafetão). Não me mantiveram prisioneira num armário por sete anos. Nunca fui forçada a abençoar um chicote antes de meu marido me bater com ele. Não fui esquartejada com uma serra de cadeia. Não fui morta a punhaladas por Richard Speck¹.

Meus mamilos não foram cortados com uma lâmina de barbear. Não fui sodomizada por meu pai. Meus pés não foram confinados até meus arcos estalarem. Não fui queimada na fogueira na França. Não fui sufocada até a morte pela remoção de anéis de metal de meu pescoço alongado. Não fui enforcada como bruxa em Salem. Não fiquei cega pela sífilis de meu marido. Nunca tive necessidade de fingir histeria, de modo que pudesse evitar relações sexuais e uma gravidez que me mataria. Não fui espancada nem mandada a um asilo por me masturbar.

Não fui testada em um crime, sendo afogada. Não fui uma princesa árabe executada por se recusar a negar que fiz sexo na adolescência. Não fui forçada a matar minhas filhas para impedir que se tornassem concubinas. Meu sangue nunca foi usado para fazer argamassa.

Não tive que suportar chagas com supuração causadas por um cinto de castidade. Não fui torturada até a morte por adultério, tendo minhas pernas amarradas juntas durante o trabalho de parto. Não fui forçada a ver meu estômago ser cortado para salvar uma criança que seria chamada para sempre de bastardo. Nenhum tribunal me mandou abrir mão da custódia de uma criança que engatinha, em favor de um pai que molestava crianças. Nenhum amante me bateu tanto que fui obrigada a me alimentar de canudinho. Não fui pendurada pelas mãos e chicoteada por ter deixado meu véu cair.

Nunca tive que servir de enfermeira para uma das outras seis esposas de meu marido, até sua recuperação. Não fui filmada copulando com cães. Nunca tive a necessidade de escrever minhas últimas palavras em excrementos e sangue menstrual nas paredes de uma cela sem janelas. Não pari um bebê agachada num campo de feijão (N.L.: não entendi muito bem isso). Meus filhos não foram tomados de mim porque saí de casa sem a permissão de um tribunal rabínico (N.L.: relativo ao judaísmo. O judaísmo rabínico é o tradicional). Não fui estuprada antes de minha execução, de modo que meus assassinos pudessem evitar a proibição do Corão para não se matar uma virgem.

Não fui mandada ao deserto como um demônio por ter me recusado a deitar debaixo de meu marido (N.L.: acho que isso é referência à Lilith, mito hebraico de que seria a primeira esposa e foi expulsa do Paraíso, sendo o demônio, por ter se recusado a "ficar debaixo de Adão", ser submissa). Nunca fui chamada de puta por não ter um hímen. Não fui entregue em casamento à idade de nove anos para um nepalês de oitenta. Não fui deixada para morrer sozinha porque fiquei viúva. Não fui uma jovem virgem enterrada viva para aplacar os deuses de uma outra pessoa. Não fui encharcada de querosene e incendiada, de modo que meu marido pudesse receber um outro dote. Não fui presa com anéis de ferro nos pés e acorrentada em um poste para morrer de fome porque amei outra mulher. Não fiquei cega, costurando pontos pequenos em uma loja que pagava salário de fome. Nunca vi uma multidão de homens aplaudindo o Estripador de Yorkshire². Não fui estuprada pelos guardas de minha prisão por ter entrado para um sindicato de mulheres. Não me pediram para casar com o marido de minha irmã mais velha quando ela morreu. Não fui morta em minha noite de núpcias por não ter conseguido mostrar sangue de virgem. Nunca servi a vinte homens de negócios japoneses em um bordel coreano. Minhas pernas não foram serradas e costuradas por trás por ter feito sexo com outro homem que não meu marido. A lei nunca me equiparou a menores, selvagens e loucos. Minha língua nunca foi cortada por ter falado na presença do chefe de minha tribo.

Nenhum tribunal jamais me forçou a casar com um estuprador, de modo que ele pudesse receber uma sentença menor pelo crime (N.L.: se não me engano, até a nossa Constituição de 88, caso a mulher se casasse com seu estuprador, a pena dele era anulada. Mas não achei nada que confirme o meu achismo). Nunca tive que pagar ao coletor de impostos com meu corpo. Não fui morta tendo uma estaca cravada em minha vagina. Nunca me obrigaram a comer piolhos da cabeça de meu marido. Nunca cortaram a carne de meu corpo para alimentar meu avô, a fim de curá-lo de sua doença incurável. Não tive que trincar os dentes no couro para amaciar os mocassins do meu senhor.

Não fui obrigada a realizar felações sem fim em meu velho marido, que não conseguia atingir o clímax. Não fui despedida por me recusar a fazer favores sexuais a um chefe. Não fui rejeitada pela faculdade de medicina, nem excluída de um clube para o qual desejei entrar, nem fui privada da presidência do meu departamento, nem me negaram a Medalha da Liberdade. Nunca fui forçada a coser botões na camisa de meu marido. Nem mesmo fui mandada para o quarto por conduta inadequada para uma dama.

[...]

Não cometi os crimes de que sou acusada por nenhuma dessas razões. Eu cometi por todas elas. Porque, muito embora nenhuma dessas coisas tenha acontecido comigo, algumas delas podia ter acontecido. E uma que não mencionei, aconteceu. E por quê? Poir causa do crime mais hediondo de todos. Aquele do qual sou profunda, notória e incontestavelmente culpada.

Eu sou mulher."

¹ Richard Speck: ele estuprou e assassinou oito estudantes de enfermagem em Illinois, Chicago. Morreu em 1991, na prisão. Artigo em inglês na Wikipedia aqui.
² Estripador de Yorkshire: serial killer condenado em 1981 por ter assassinado 13 mulheres e atacando outras na Inglaterra. No momento está vivo, cumprindo prisão perpétua. No dia 16 de julho, a Suprema Corte de Justiça ouvirá sobre a possibilidade de conceder liberdade condicional. Artigo em inglês na Wikipedia aqui.

O link do cinto de castidade foi para que apareça a imagem, mas eu queria ambas as imagens e a descrição. Então, por favor, relevem os comentários. São nojentos demais - aparentemente é um blog sobre sadomasoquismo.


imagem retirada do We♥It


10 comentários:

Beta Matsuoka disse...

Cara, eu PRECISO ler esse livro! Me apaixonei! Venero literatura feminista. E eu nunca tinha ouvido falar desse livro aí. Achei esse trecho simplesmente soberbo! Até arrepiou em algumas passagens! Muito bom!

Mas, fala sério... mulher sofre, né? E ainda nos chamam de sexo frágil! Se fôssemos tão frágeis assim, já estaríamos em extinção... desde os tempos de Adão e Eva nós somos discriminadas, estupradas, castigadas, mas estamos aqui, vivas, sempre na luta, firmes e fortes!

Ótimo post, Luna! ;D

Beta Matsuoka disse...

Ah, esqueci de dizer: o link do cinto de castidade não entra. Está redirecionando para o blogger!

Carol Winchester disse...

Adorei o texto. Confesso que não li ele todo, achei um pouco forte. A verdade dói.

PS: Luna, mostrei a foto pra minha mãe daquele quarto roxo que esta numa postagem do seu blog que eu achei lindo e adivinha? Ela disse que vai fazer um quarto daqueles pra mim! Sempre me dando sorte. qq

Beta Matsuoka disse...

Eu também não conheço nenhum portal brasileiro sobre j-rock. Sem falar que, os poucos sites que falam sobre o assunto, só focam em Larc en Ciel, Gazzette e cia limitada do visual kei... que eu detesto! Gosto de j-rock mais indie, punk, menos famoso, menos... fantasia.

Posso te indicar muitas bandas de jrock, mas talvez não agrade muito suas leitoras, pois como disse, são bandas menos pop, como: Asian Kung Fu Generation, Ore Ska Band, Gollbetty, Maximum the Hormone, Sambomaster, Beat Crusaders, Tropical Gorilla, Asparagus, Your Song is Good, Ellegarden, Remioromen, Midnight Pumpkin, Tokio, Lindberg, The Blue Hearts. Pra mim, são o verdadeiro j-rock.

De j-pop, te sugiro Ikimono Gakari (acho que é a banda mais idolatrada aqui no Nihon), Arashi, V6, Utada Hikaru, Aiko, Angela Aki, Ayaka, Every Little Thing, Ken Hirai, Mika Nakashima, Yui, Yuki e Kimura Kaela.

E muitas dessas q citei tem músicas em animes ou doramas!

Mas eu te sugiro o seguinte: busque sites por nome das bandas. E de preferência em inglês. Ou então entre em comunidades deles no orkut e pesquise, pq site que tem tudo em um só lugar acaba não falando nada, no final.

Espero ter dado uma luz! XD

Ana Beatriz disse...

Olá!
Bom, eu gostei dessa frase que você citou, e isso me fez pensar em como evoluimos, pelo menos um pouco no tema de que as mulheres não tão um sexo tão frágil. É triste ver que antigamente elas eram consideradas um objeto para os homens, que poderiam ser desperdiçados a qualquer momento, tratadas desse jeito e sofrendo, pagando por coisas que não fizeram. Mais todas essas mulheres que já sofreram algumas dessas citações ajudaram a construir o que somos hoje. E a cada dia, lutando pela liberdade das mulheres, a tirar o estereótipo de que somos frágeis. Algumas podem ser sim, mas nós, não. Muitas vezes eu já fui abordada por colegas de sala insinuando o quanto nós somos fracas, não dando importância a nossa opinião. Tudo o que fiz foi dar um belo discurso na cara deles, os deixando chocados. Precisamos mostrar o quanto podemos nos expressar, e que nossa opinião tem que ser valorizada. Pelo menos, das mulheres que realmente querem mudar.

Yasmin c.k. disse...

Nossa, sem palavras. Muito chocante todo o texto. Bem verdade a frase final, o crime de ser mulher, de todos os crimes citados no texto eu já tinha ouvido falar, e lido sobre. Nem preciso dizer que deve ser um livro e tanto. Ótimo post.

Anônimo disse...

Tem selos pra você no meu blog, passa lá ;D


http://cgw-sonhoperdido.blogspot.com/

Marcelle disse...

Nossa,seu tezto ficou muito bom e claro esse livro tbm deve ser bom.Já tinha visto sobre ele em outro post seu.É impressionante q depois de td isso pelo qual as mulheres passaram,ainda exista preconceito.Que sejamos consideradas o sexo frágil´pq vamos falar a verdade:os homens nunca teriam passado por tudo isso e se reerguido,talvez nem estivessem aqui se estivessem passado por tudo isso e muito menos sem nós.Pq as mulheres deram a vida a todos os homens,as mlheres sempre os apoiam e os ajudam a realizar seus sonhos(diferente do que fazem com a gente) e sem mães,esposas,irmãs,amigas,filhas,primas,avós e professoras os homens não seriam nem um quarto do que são hoje.É impressionante que milhares de mulheres tiveram de morrer queimadas para conseguirem apenas UM dia no caledário,pois após tudo isso que passamos merecemos TODOS os dias!Esse trecho foi muito triste e muitas vezes me fez mal,saber de tudo isso.A verdade dói.Eu acho que nós,mulheres somos superiores aos homen em vários aspectos:somos mais corajosas,corremos atrás de nossas sonhos,não procuramos o caminho mais fácil e sim o certo(claro há exceções),não reclamamos de trabalhar e ao chegarmos em casa não deitamos no sofá pra ver TV,nós cozinhamos,lavamos,passamos,cuidamos das crianças,somos guerreiras,mas mesmo assim eu acho que vai levar um tempo pra conseguirmos o reconhecimento que merecemos.

Unknown disse...

Ai,que coisas horriveis, só de pensar que ao menos uma dessas coisas já conteceu dá uma agonia.

Coral Fortunato disse...

Esse livro vale todo por esta passagem...me deixou arrepiada quando li..é difícil acreditar que, mais que muitas mulheres passarem por isso, muitas realmente acreditam que deveriam passar por isso, e repetem estas macabras tradições com suas filhas, sobrinhas, netas...