terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

como se misoginia fosse novidade

Eu liguei para o CIEE hoje e perguntei sobre vagas de estágio na área da informática. Tem. Somente para garotos. Empresas exigem que seus estagiários sejam homens. Mulheres que são de eletrônica/eletromecânica sofrem mais: quase todas as vagas que aparecem são para os homens.
Vejo em casa a notícia de uma festa de aniversário, cujo presente do aniversariante foi o estupro de cinco mulheres. Premeditado desde o começo. Cinco mulheres amigas dos convidados em geral que foram sequestradas, encapuzadas e estupradas em uma festa com o único intuito de diversão. Duas conseguiram ver seus estupradores e, por isso, foram mortas.

Talvez você não veja relação entre a exclusão de garotas no meu círculo social e entre o estupro coletivo premeditado. Mas eu vejo. Essas duas coisas, tão diferentes, são sintomas do mesmo mal que existe na humanidade há séculos: machismo, misoginia, preconceito.

Aí vem nego dizer que feminismo é inútil, é praga da humanidade, é pior que Restart misturado ao Michel Teló, que estraga as famílias. Desculpa aí, galera, mas sou eu que tive que ouvir (com uma voz feminina lamentosa que dizia, implicitamente, "eu concordo com vc, eu tb xingo muito, mas sou só recepcionista") que só pessoas que tivessem nascido com um pênis poderiam ter chance a algumas vagas de estágio, porque era essa a determinação das empresas. Engraçado que a bendita empresa não é um bordel. Não é uma agência de modelo que precisava de caras pra fazer um calendário. Não é um laboratório que precisasse testar remédios para câncer de próstata e precisava de voluntários. Era empresas que precisavam de gente para mexer em computadores. Fazer manutenção. Formatar. Limpar gabinetes. Manter computadores funcionando.

Essa parada que qualquer um consegue fazer, se souber como fazer.

Aí leio essa notícia linda e maravilhosa. Sobre como um carinha (casado) decidiu que o presente do irmão dele (casado) seria, olha só!, um bando de mulheres para estuprarem! Fantástico! A versão filme-de-terror da garota que sai do bolo. E daí se estuprar é um crime? E daí se só a idéia de estraçalhar emocionalmente e fisicamente uma pessoa, seja ela mulher ou homem, costuma dar embrulho em uma porrada de gente? Gente decente, diga-se de passagem. Não, cinco mulheres foram estupradas em série em uma festa para a diversão de todos. E duas foram mortas. Mortas porque conseguiram identificar seus algozes. Porque estuprar e matar mulheres, pra essa galera, é uma ótima idéia de diversão. Eu me pergunto o porquê desse tipo de crime acontecer e de não ter uma divulgação massiva em cima desse caso, como deveria acontecer.

O que me faz lembrar um outro caso. Florianopólis. Três adolescentes decidem que é muito legal estuprar a ex-namorada de um deles, coleguinha de todos, enquanto a enchesse de bebida. Decidiram enfiar coisas na vagina dela. Como um controle remoto. Mas um dos carinhas estupradores é filho do diretor ou de algum figurão da rede local (acho que é RBS). Blogueiro denuncia. Anos depois (depois de ter sido perseguido e ameaçado de morte), aparece que se suicidou. Caso, logicamente, é abafado.

Me pergunto... ele se suicidou... ou suicidaram ele?

Desde que a humanidade existe, sempre houve o lado fraco da corda. Mulher sempre esteve na listinha de "bora ver quem tripudiar agora". Fomos forçadas ao casamento com homens que poderiam ser nosso avô só para que nossos pais ganhassem seus cavalos. Fomos estupradas em série como estratégia de poder e humilhação. Fomos usadas como objetos sexuais. Fomos proibidas de ler e escrever. Fomos proibidas de trabalhar, de votar, de ter uma casa própria, de sair na rua sem marido/pai/irmão/ser com pênis. Fomos obrigadas a nos cobrir porque nego não sabe se controlar e ninguém diz que ele deveria se controlar. Em toda a história, temos um longo histórico de abusos, agressões, humilhações e coisas horríveis que nos foram feitas simplesmente porque nascemos com uma vagina. Só por isso.

O mundo mudou muita coisa. Mas a noção de mulher como "propriedade" ainda existe. As duas únicas mulheres que não foram estupradas nesse festival de horror foram as esposas dos carinhas. Elas foram poupadas porque eram consideradas propriedade dos caras. Elas não foram estupradas e humilhadas porque já tinham donos. Mas as mulheres estupradas não tinham "donos", logo poderiam ser de qualquer um. O carinha que força a barra na festinha quando você diz "não" está na mesma vibe: acha que você é propriedade dele porque não é de ninguém. E por não ter namorado nem marido, você é do primeiro que te exigir. Cantadas grosseiras e abordagens na rua fazem parte disso também. E junto com essa questão da propriedade, vem a questão de mulher - por ser mulher - não ter voz. Afinal propriedades não tem voz.

E se não tem voz, então para que servem se não fazer a comidinha, arrumar a casa e estar sempre ali quando dono quiser? Vem a noção de inferioridade - que tanto nos esforçamos para combater. E aqui entra, então, a questão da vaga-de-estágio-ser-só-pra-manolos-que-nasceram-com-paus. Empresas que exigem que somente homens façam o trabalho que mulheres também poderiam fazer estão entrando nessa vibe de acharem que mulher não dá conta do serviço. De acharem mulher inferior. De acharem que mulher só faz psicologia, letras, essas coisas pra ser professora e que não existe mulher na área mais técnica: eletrônica, eletromecânica, informática. O velho pensamento típico ~ homens são racionais e por isso fazem mais Matemática, mulheres são mais emocionais por isso fazem Psicologia ~

O velho pensamento que é derrubado a medida que mais mulheres fazem Matemática, Engenharia (de vários tipos), Física, Química e diversas outras áreas exatas, e mais homens fazem Psicologia, Letras, Enfermagem e diversas outras áreas mais humanas. Ainda falamos "há os médicos e as enfermeiras" ou "há os empresários e suas secretárias", mas isso não vai ser mais realidade - não hoje, infelizmente, mas daqui a dez, vinte anos. Gostaria de estar aqui no Pernície daqui a dez anos falando que nenhuma empresa impõe nenhuma restrição quanto ao gênero, porque as pessoas entendem que isso não deveria fazer diferença na inteligência e capacidade de uma pessoa. E eu gostaria mais ainda de falar de como a sociedade progrediu e aprendeu que mulheres são tão iguais, são tão gente quanto os homens e que se houvesse um caso desses de estupro, toda a mídia falaria do caso como falou dos dólares na cueca ou da bolinha de papel do Serra e exigiria imediatamente a punição dos envolvidos.

Isso - uma sociedade não misóginia, não machista, não homofóbica, não racista, não classista (aquela vibe de rico melhor que pobre), não preconceituosa de todas as formas - que se trata uma melhora verdadeira. Um mundo melhor. Sinceramente, eu ainda quero manter essa esperança - mesmo que notícias como a da festa de horrores tentem tirá-la completamente de mim.

Um comentário:

Jessica disse...

Nossa, que texto perfeito!
Li a história do estupro em um outro blog e foi ultrajante. A sociedade chegou ao limite.
Mas me vi muitas vezes nesse seu texto. Até quando seremos subjugadas? O peso de ser mulher ainda é grande.